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A tricontinentalidade revolucionária de Glauber sob os olhos do professor Humberto Pereira


por Maria Luiza Borges e Fábio Sena

Aconteceu na cidade de Vitória da Conquista entre os dias 2 a 6 de setembro de 2019 a 14ª edição da Mostra Cinema Conquista, tendo como homenageado do ano o cineasta e escritor conquistense Glauber Rocha. A Mostra contou com a exibição de curtas e longas metragens, de todos os tipos de linguagem e abordagem de temas, além de conferências e exposições direcionadas a Glauber no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima.

Na conferência ocorrida no dia 03 de setembro, o professor, pesquisador e crítico de cinema Humberto Pereira da Silva trouxe uma abordagem à produção fílmica de Glauber Rocha realizada no exílio, na década de 1970, à luz de seu projeto de cinema tricontinental.

O projeto de cinema tricontinental surge no contexto dos anos 60, quando Glauber sutilmente adere à possibilidade de uma nova estética fílmica, em “Terra em transe”, mas a princípio ainda restrita à realidade latino-americana. Ele buscava, sobretudo, anunciar o modelo de cinema novo que combateria à cultura do cinema ocidental pautado na estética burguesa. Para tanto, Glauber pretendia fazer uma produção que seria marcada pela exposição das consequências da fome em países de três continentes: América Latina, África e Ásia.

Segundo a visão e estudos do professor Humberto, o projeto tricontinental de Glauber apenas falhou se considerada sua recepção na Europa na década de 70, já que esse projeto foi baseado na concepção de Terceiro Mundo (nações não incluídas entre os países capitalistas ou socialistas, incluindo todos os Estados que saíram de fortes períodos coloniais e sofrem dependência econômica de países industrializados).

“O Glauber tem uma posição política forte, de independência, autonomia e daí vem a necessidade de realização de certos tipos de cinema, buscando bater de frente com o cinema comercial americano mesmo apesar do cinema soviético. Mas se considerado a recepção desses dois filmes e o fato de que ele não conseguiu uma articulação com outros intelectuais da América Latina, ele acaba por não alcançar o objetivo. Ainda assim, esses dois filmes (“O Leão de 7 cabeças” e “Cabeças Cortadas”) permanecem para mim como obras importantíssimas, não só para entender um determinado momento da história do cinema mundial, mas entender as possibilidades de realização do cinema no terceiro mundo e então, ao invés de pensar no seu ‘fracasso’, leva-se e conta a grande inovação que Glauber traz para um cinema de terceiro mundo.”

Dentre todas as ocupações profissionais de Glauber Rocha, “crítico” costuma ser a sua função mais aclamada. Ele trouxe conceitos para o cinema que se estendem para todas as vertentes sociais ainda nos dias de hoje, a exemplo dos termos didática-épica. Estes significam, respectivamente, informação e revolução. Para Glauber, um não poderia existir sem o outro, e uma vez que aplicados no seu projeto tricontinental fariam uma mudança no cinema e no pensamento do mundo, e é por isso que para o estudioso Humberto Pereira, Glauber se perpetua. “Numa leitura retrospectiva, acredito que Glauber permanece atual e não só pela realização de eventos como a Mostra e por estarmos aqui e agora discutindo Glauber rocha, mas é impressionante a vitalidade do pensamento dele e das suas posições ao longo do tempo. [...] isso demonstra para mim a força das ideias para além do seu próprio tempo.”

Glauber é tido como um personagem que, apesar de ser estudado por muitos, é compreendido por poucos, e que, 38 anos após a sua morte, segue sendo insubstituível.

“O Glauber não é um personagem de fácil entendimento. Estamos diante de um artista cuja genialidade e valor são complicados de se colocar em dúvida, mas ao mesmo tempo suas posições nunca são efetivamente conciliáveis. Ele nunca nos permitiu uma zona de conforto. Isso gera justamente uma situação que exige o tempo todo decodificação. Exuberância em sua fala, efeitos de retórica, hipérbole..., mas tinha uma intuição do que estava acontecendo num momento muito grande, que, na minha opinião, o diferencia de muitas pessoas que estavam em seu entorno. Não só em relação à política do país, mas também em relação aos rumos da arte cinematográfica. Essa intuição é extraordinária. [..] Para buscar entender Glauber, é essencial a existência da humildade. Essa compreensão dele é dificultada porque a vida dele e a realização fílmica se misturam o tempo todo.”

Glauber buscou durante a sua vida criar um sentimento de colaboração humana através de uma nova cultura que destruísse os velhos padrões do individualismo burguês, chegando a afirmar que, nesta etapa da sua luta revolucionária, seria necessário recorrer ao instrumental psicanalítico, para que, todos os homens tendo absoluta consciência, fizessem a revolução das massas criadoras. Apesar de extremamente incompreendido no seu tempo, Glauber traz para o mundo cinematográfico e existencial a premissa de que não existe sentido em fazer arte, política ou qualquer outra atividade social se deixar de lado os valores humanitários, como união, solidariedade e inclusão para aqueles que, de certa forma, foram ou são dominados pelo poder econômico global.

                                                                                      

                                                                                                    

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