por Fábio Sena
Ela é filha do cineasta conquistense Glauber Rocha com
a artista plástica, fotógrafa, poeta e cineasta parisiense Paula Gaitán, neta do
crítico de cinema e poeta colombiano Jorge Gaitán Durán pelo lado materno, neta
da guardiã da memória cinematográfica de Glauber, Dona Lúcia Rocha pelo lado
paterno, sobrinha da atriz Anecy Rocha, irmã dos cineastas Eryk Rocha e Pedro
Paulo Rocha, tem ancestralidade eslava, é judia, neta e bisneta de russas.
Ava Patrya Yndia Yracema Gaitán Rocha.
Ava Rocha.
Tê-la, no tête-à-tête, para uma entrevista, é uma experiência
formidável, coisa que a memória não apaga. Ava herdou do pai o magnetismo que
inebria, a palavra-alfinete, que dilacera e dói, mas cura. Verbo e silêncio caminham
entrelaçados, equilibrados em suas falas, entrecortadas de parênteses e reticências
e interrogações. Ava escapa incólume às certezas cruas dos tempos de agora. Às verdades
absolutas, às convicções, prefere seguir a rota do aprendizado permanente, da busca.
Ava Patrya Yndia Yracema Gaitán Rocha.
Ava Rocha.
Ava é, no colóquio, uma presença vívida. Como sua
música, é doce e encantadora, intensa e desafiante, sonora e radiante. Ao sol
da manhã, ainda não suficientemente desperta, hipersensível a movimentos
bruscos – que a incomodam e dispersam –, Ava amassa preguiçosamente a seda, serenamente enrola seu cigarro, companhia da
conversa e, em singular quietude, fala de inspiração, arte, ancestralidade, família,
Vitória da Conquista e espiritualidade.
O passo de Ava é calmo. Nela repousa, serena, a índia que almeja ser – o que ela deseja, em síntese, para todos nós, brasileiros: que sejamos índios, que é futuro, “não coisa do passado”. Ava é partidária da conexão, do autocuidado humano, da crença na natureza, da trança. “Por isso, coloquei o nome de meu show Trança, de trançar com as pessoas, de trançar com as possibilidades”. E acrescenta:
Ava Patrya Yndia Yracema Gaitán Rocha.
Ava Rocha.
Fábio Sena: Ava, seu avô, Jorge Gaitán Durán, grande
poeta colombiano, editou por mais de uma década a revista literária Mito, publicação
à esquerda. No Brasil, há um presidente aclamado pelos seus seguidores de “mito”,
com uma política de extrema-direita. Como tem sido para você conviver com o
mito brasileiro? Como tem sido esta experiência no cotidiano de conviver com
algo que você denominou de “uma energia esquisita”?
Ava Rocha: Pois é. Eu sinto que a gente chegou num
ponto de muita desconexão, com tudo, e eu também. Às vezes, a gente não sabe
nem cuidar do nosso próprio corpo, como pretender cuidar do outro, das coisas,
da água, da natureza? Este sistema opressor, capitalista, toda essa velocidade
da tecnologia, é tudo um pouco desumano. Veja: eu fui pra China, então peguei
um avião e em 15 horas eu estava na China ... tudo isso é muito lindo, mas é
desumano. Você fica atribulado, atravessa mares, dias e noites, de uma forma
que não é orgânica, parece que o corpo não tem o tempo para se habituar, fazer
a travessia como antigamente fazíamos. Então, estamos num momento de muita
desconexão e eu acho que a gente tá vivendo o reflexo disso, o resultado de um
tempo devastador, muita destruição, e que o Brasil conseguiu eleger uma pessoa
que representa o pior do pior do pior, representa e alimenta, nutre esta
desconexão. E é ruim porque a gente precisa nutrir o contrário, recuperar essa
conexão, recuperar o que a gente é, a nossa própria natureza, porque somos
natureza, não estamos separados. E como lido com isso no meu cotidiano...
fazendo minha arte, tentando inventar mecanismos de sobrevivência, de crença,
enfim, de estar num movimento contrário, de conexão... por isso coloquei o nome
de meu show Trança, de trançar, de trançar com as pessoas, de trançar com as
possibilidades. E a minha arte é um instrumento muito forte pra mim, pessoalmente,
de me sentir vida, de sentir que tenho forças, que tenho minhas armas para atravessar
tudo isso e colaborar com o mundo de alguma forma.
Fábio Sena: Que heranças você enxerga em si de seu pai,
de sua mãe, de seu avô...
Ava Rocha: Pois é... Eu sou muito influenciada por
todos eles, pelos artistas da minha família. Não só influência... eu sinto
assim uma coisa estranha, espiritual. Por exemplo: às vezes, eu tenho uma ideia
e dez minutos depois minha mãe diz: ‘eu tive uma ideia’, ou vice-versa. Eu sou
muito parecida com minha mãe, eu penso coisas muito parecidas com ela. Tenho isso
com meu pai e tenho isso com meu avô também. Às vezes escrevendo poemas ... às
vezes ... eu sinto que, além da influência eu tenho uma herança talvez genética,
talvez espiritual, uma conexão ... também eu li muito a poesia do meu avô, a
poesia da minha mãe... mas eu me sinto conectada do ponto de vista da
imaginação, dos sonhos (risos)...
Fábio Sena: Você fala recorrentemente do seu lado
espiritual. De que maneira você alcança, você trabalha sua espiritualidade?
Ava Rocha: Assim ... tudo é espírito, na verdade,
não é? Nós somos dois espíritos... eu acho (risos). Não é religioso... quando eu
falo espiritual é mais uma forma de narrar esta minha busca por essa conexão e
por entender que as coisas não se explicam só nesse plano, e que cada vez mais
eu nutro e entendo essa relação espiritual, na qual cada vez mais eu creio...
quando eu era mais jovem eu era mais cética, até, mas é como se a cada dias
isso se tem revelasse com mais força pra mim, e a minha arte, o meu canto tem
sido um portal muito forte pra isso. Então, quanto mais eu avanço na minha
arte, no meu trabalho, quanto mais eu acumulo dias na minha trajetória, mas eu
fico assim sensível a tudo isso.
Fábio Sena: Tem algo interessante nesse seu canto,
eu sua arte... Em suas narrativas, você busca falar, representar as minorias.
Como foi pra você alcançar este universo social? Foi uma herança decorrente do convívio
também ou você que percorrer seus próprios caminhos para alcançar essa
compreensão?
Ava Rocha: Eu não tenho compreensão nenhuma de
mundo, na verdade, eu tô compreendendo. Assim... eu sinto que tenho muito a
ensinar, mas sobretudo a aprender. Acho que é um equilíbrio entre as suas
convicções, quando a gente é arrogante e tem certezas e convicções, mas sempre
com o equilíbrio da humildade, sempre nesse movimento. Acho que é impossível,
pra mim, ter uma compreensão onde não seja permitido o erro, o risco, onde não
sejam permitidas coisas que seriam contrárias a alguém que é muito sábio. Então,
eu erro o tempo todo. Mas o que eu faço com o erro é que eu reinvento o erro. Eu imagino assim... é como se eu imaginasse
que tenho muito poder e eu faço mágica... mas eu não faço... é tudo uma
intenção que você coloca. Então, ontem a gente benzeu, né, o público. Era uma
água, mas a intenção, o desejo, eu acho que este é o segredo dos ritos. A gente
não sabe se aquela batata é sagrada, mas a intenção e a energia, e como você
transforma isso. Então, faço da minha arte um pouco esse caminho, de cura
pessoal e obviamente não tô curando ninguém, mas eu desejo curar, desejo ser um
irmão pra essa pessoa. Então, eu não sei nada, estou experimentando essa relação
e sempre aprendo coisas, coisas que, sei lá, são revelações, são
espirituais.... é como se fosse tudo uma mentira e uma verdade ao mesmo tempo,
um show de magia, digamos, de circo, magia, sei lá ... (rsrs).
Fábio Sena: E por falar em conexões e desconexões,
quando você chega a Vitória da Conquista e vai a casa de seu pai, que
sentimentos são despertados? Você se conecta a algo?
Ava Rocha: Sim, eu sou muito muito ligada às minhas
raízes, eu sou muito misturada. Eu tenho muita coisa: eu sou judia, minha
família é eslava, a família da minha mãe é judia, imigrante, que chegou no
Brasil... então tem meu pai, minha avó, minha família aqui em Vitória da
Conquista, minha raiz brasileira se finca aqui na trajetória de minha avó, do
meu pai. Então, tenho a Colômbia, que é meu avô... enfim, tenho uma relação
muito forte com minha ancestralidade de forma geral, eu me interesso, me conecto
e sinto. Quando eu entro num restaurante russo eu fico mexida, por exemplo,
porque tenho minha ancestralidade russa, minha bisavó, minha tataravó, então eu
tenho essa relação. Mas é uma sensação de carinho com Vitória da Conquista. Toda
vez que alguém diz que é de Vitória da Conquista eu já me sinto em casa. Por exemplo,
a Açucena, que é uma cantora daqui, ela foi no meu show, veio falar comigo, eu
senti uma grande simpatia por ela e ela disse: “eu sou de Vitória da Conquista”.
Eu abracei ela e disse: ‘Agora somos irmãs”. E tem essa conexão, eu sinto essa
conexão. Tem gente que não liga sobre pra onde veio, pra onde vai. Mas eu
sinto.
Fábio Sena: Ava, qual caminho você enxerga pras
pessoas do Brasil, quais as possibilidades de expurgar isso que você chama de “energia
esquisita”?
Ava Rocha: Cara, as pessoas perceberem que vai
chegar uma hora que elas não vão ter ... que não importa quem seja o presidente
da República, elas não vão ter ar pra respirar. Importa, na medida, em que você
tem um presidente que não cuida, piromaníaco ... mas existe um bem, existe um
objetivo que é comum, da sobrevivência, e as pessoas precisam pensar que devem
diminuir o consumo, que elas precisam ter consciência. Eu diria que depende
realmente da gente, das pessoas entenderem que carro não é oxigênio, que a
gente precisa perceber que vai ter uma hora petralhas e bolsonaristas vão
morrer asfixiados dentro do mesmo calabouço, vai tá todo mundo morto, asfixiado.
Então a gente precisa na natureza, nos bichos, pensar na vida. E aí entra a política. A gente precisa pensar
em políticos que cuidem do principal, que é toda questão climática...
Fábio Sena: Neste aspecto, a questão indígena é
muito importante...
Ava Rocha: Pois é ... a gente identifica muito o
índio como coisa do passado, não é? Mas índio é do futuro. Eu sinto que a luta
indígena hoje é uma luta muito generosa, porque ela tá transcendendo sua
própria demarcação territorial. Eles estão vindo, alertando o mundo e se
colocando como o que são, protetores, guardiões e missionários da natureza. Eles
detêm a sabedoria e sabem como funciona toda organicidade da natureza... então,
o que tenho pra dizer é que a gente seja cada vez mais índio, que se a gente se
conecte cada vez mais e entenda que, por exemplo, a demarcação de terra não é
terra deles, porque a gente tá demarcando a nossa própria possibilidade de sobrevivência.
A gente precisa ser cada vez mais índio, que são os donos desta terra, e cada
vez mais preto também.


Gostei da entrevista e pude sentir a simpatia da moça. Bacana!
ResponderExcluirExcelente entrevista Fábio. O índio foi, é e será o único a está em conformidade com esse mundo!
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